quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Joaquín Herrera?

Parece-me comum que, talvez como forma de compensarmos a dor da perda, usamos a morte para santificar aqueles que nos deixaram, exaltando qualidades e expressando sentimentos que não foram revelados a quem realmente importava.

Ao falar do amigo e mestre Joaquín Herrera, tentarei fugir a essa tentação, e começo dizendo que Joaquín jamais pretendeu ser puro, santo, perfeito, e a sua "Teoria crítica dos direitos humanos" bem revela isso, assim como a sua condição declarada de ateu, na medida em que não reconhece a possibilidade de um ser humano superior a outro, ou de uma força maior que nega ao homem influência sobre os seus sucessos ou fracassos.

Por outro lado, embora talvez não tanto quanto gostaria pelo simples e imbecil temor de ser piegas, manifestei em público meu afeto, admiração e sobretudo gratidão pelo fato de ele ter me resgatado dos meus ideais presunçosos, das trevas do pessimismo, do fantasma da impotência e das peculiares "paixões tristes" que suscitam, fazendo-me reencontrar com o meu entusiasmo juvenil - nas palavras de Cazuza, "daquele garoto que queria mudar o mundo" mas que "agora assiste a tudo em cima do muro". Principalmente, por ter se esforçado em dar a mim e a tantos outros que o ouviram ferramentas para, antes de qualquer coisa, formular as perguntas mais adequadas aos nossos propósitos; procurar as respostas longe dos fachos de luz propositalmente direcionados para semear e manter as trevas e para resgatar em nós a potência humana, o universal que jamais questionou, antes sempre exaltou em sua teoria: a aptidão humana de, como costumava dizer, "hacer y deshacer mundos".

Joaquín sempre fez questão de dizer-se um mundano, vale esclarecer, impregnado ou passível de sê-lo pelas coisas reais, concretas, e, portanto, impuro, mesclado, totalmente avesso às abstrações, às crenças que furtavam o poder do humano. Certa vez, respondendo-me a uma indagação, disse-me que sua única crença era no homem.

"Para o bem e para o mal", expressão que sempre usava, sem, todavia, cair no sectarismo da dualidade, antes para ressaltar a sua filosofia impura, Joaquín sempre foi humano, demasiadamente humano: repleto de defeitos, mas também de qualidades. Apesar do seu ateísmo convicto e manifesto, dentre as suas mais admiráveis qualidades estavam as que se costuma atribuir a santos, budas ou outros seres tidos como iluminados: reconhecer em cada ser humano um igual, merecedor do respeito que revela que a desigualdade é algo externo e não inato, e por isso mesmo faz-se necessário reciprocidade para devolver àqueles que sustentam os nossos privilégios com suas carências e sacrifícios, responsabilidade para conscientizarmo-nos dessa interdependência entre desigualdade e privilégios e atuar para romper com esse ciclo perverso, através de medidas necessárias de redistribuição.

Joaquín viveu intensamente as paixões humanas, no sentido mais poético, prazeroso, e portanto mundano que essas podem ter, mas também as conseqüências de assim ser em nosso mundinho hipócrita, no qual a superficialidade e a maquiagem tentam ocultar as profundas imperfeições de nossa essência humana.

Como bom humano, sofreu, algumas vezes transformando a dor e as lágrimas em poesia, outras assumindo a sua debilidade, vivendo-a no anonimato ou compartilhando-a com os amigos, mas a imagem que sempre o caracterizará, para mim e para muitos que o conheceram de perto, será sempre a de um largo sorriso nos lábios; o som, do seu espanhol alegre a lembrar-nos insistentemente a necessidade de cultivar paixões alegres; o tato, do seu sempre forte abraço; o cheiro, sinceramente, a minha eterna rinite não me permite lembrar, mas o sabor é inconfundível, porém "intraduzível" em palavras, complexo como a vida, soma de todos os sentidos: tapas, vinho, risos, músicas e conversas em Sevilha; novos amigos; novos conhecimentos e paradigmas; aventuras; contradição entre o consolo de quem cumpriu com maestria a sua missão e viveu intensamente e a certeza de que muitíssimo ainda tinha por partilhar; certeza de um descanso merecido e de uma saudade difícil de estancar.

As palavras finais que penso caberem aqui, entretanto, não são as minhas, mas as do próprio Joaquín:

“[...] La vida continuará, lo queramos o no, después de nuestro paso por ella. Los bosques seguirán produciendo oxígeno y frutos. Los mares continuarán aportándonos lluvia y sal. La gente que amamos, seguirá amándonos, quizá aún más que cuando estábamos aquí con ellos. El árbol, la gota de agua, el sentimiento de amor estarán siempre ahí coloreando la vida con todos los colores del arco iris y con todas las miserias de nuestras necesidades. Nada es más alto o más pequeño. Todo es lo vivo, lo que perdura, lo que nos acoge y lo que nos recoge”.

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